22.12.10

=o poeta na tela=



Manuel Bandeira comenta, no Jornal do Brasil de 15 de novembro de 1959, a exibição de "O poeta do castelo":

"Senti-me devassado na tarde de anteontem, e de noite não dormi bem, a minha própria imagem me perseguia. Fiquei também bastante vaidoso, meio compenetrado de que tenho um enorme talento para ator e de que Hollywood não sabe o que está perdendo na sua ignorância da minha existência."



E o diretor Joaquim Pedro de Andrade conta como foi filmar o poeta:

O POETA FILMADO
Suplemento literário do Diário de Notícias de 17 de abril de 1966

Há seis anos atrás, cercado de refletores, cabos, trilhos e uma equipe de filmagem que se mexia nervosamente em seu pequeno apartamento, Manuel Bandeira descobriu que era um bom ator. A sua risada alegre e inesperada, comemorando o primeiro take do filme O Poeta do Castelo, foi para mim a mesma e boa surpresa que desde menino eu ouvia quando menos esperava.

Sou afilhado e amigo de Manuel Bandeira. Às quartas-feiras, ele vinha jantar com meu pai (Rodrigo Melo Franco de Andrade) e falava de tudo. Me lembro bem das noites em que ele se indignava, contando alguma coisa que o tivesse irritado e agitava-se impulsivo, violento, para de repente achar graça na própria fúria e na história que estava contando. Vinha então aquela risada alegre que eu quis pôr no filme e acabou resultando na única cena que o ator Manuel Bandeira teve dificuldade de fazer.

O telefone tocava, na sua mesa de cabeceira. Manuel atendia e quando reconhecia a voz de um amigo dava a tal risada. A partir dessa alegria, segundo o roteiro, é que o poeta tomava impulso para ascensão a Pasárgada, no fim do filme. Fizemos um ensaio. Manuel riu sem vontade. No segundo e terceiro ensaios o ator se irritava cada vez mais, quando ria. Experimentamos então o estímulo real. Manuel telefonou a um amigo, Dante Milano, se não me engano, para pedir que ele lhe telefonasse de volta. Mas o Dante não estava. Quando começamos a procurar outro amigo, no caderninho de telefones do poeta, ele perdeu a paciência. Mandou rodar a câmera, atendeu o telefone que não tinha tocado, perguntou quem estava falando e ao ouvir a risada imaginária deu a risada, mais alegre e espontânea do que nunca. Guardo mágoa, até hoje, porque a campainha do telefone continuou tocando, no filme, mesmo depois do poeta ter tirado o fone do gancho. A culpa foi do montador Baldacconi, que num momento de mau humor resolveu me hostilizar dessa maneira insólita.

Se eu pudesse hoje fazer outro filme sobre Manuel Bandeira, não lhe pediria como fiz antes para que representasse o seu personagem diante da câmera como se ela não existisse. A técnica do cinema direto, desenvolvida recentemente, pôs bem a descoberto o artificialismo desse processo usado nos documentários posados tradicionais. Mesmo assim e ainda agora, acho que os dados da composição do filme, talvez por serem tão aparentes e declarados, funcionam como a proposição de um jogo, como na obra de ficção, e armam um processo eficiente para apreender e, transmitir uma impressão verdadeira, ou pelo menos sincera, sobre o poeta filmado.

Sensível a esses problemas, Manuel Bandeira informou a grande número de pessoas que a operação da compra do leite, realizada várias vezes por semana, não tinha nada da pungência com que aparecia no filme. Era, para ele, uma ação desprovida de emocionalismo. E que nesse caso, como em outros episódios filmados, a verdade imediata, realista, foi substituída pela verdade de uma representação, de uma visão interpretativa, tão legitimamente como na subida ao céu que o poeta pratica em vida, no fim do filme. Por esse processo, o roteiro pretendia comprimir na manhã cotidiana do poeta a representação de sua vida.

Quando tive a idéia do filme, pedi a Manuel Bandeira que escrevesse um esboço de roteiro aproveitando tudo que ele costumava fazer de manhã, num dia comum. Manuel começou assim: “B. está dormindo. De repente se mexe e acorda. Estende a mão, apanha o relógio-pulseira na mesinha ao lado, vê que já são 7 horas – tempo de se levantar. Senta-se na cama, passa a mão na cabeça, fica alguns segundos pensativo. Afinal ergue-se, veste o roupão, caminha para o balcão, escancara a janela”. E acabou assim: “B. aproxima-se, da banca dos jornais, compra o Correio da Manhã e afasta-se pela avenida Presidente Wilson, lendo a folha”.

Naquela altura eu ainda não conhecia a força do ator e tive medo de abrir o filme com o despertar do poeta. Acho que não há nada mais difícil para um ator do que uma cena em que ele está dormindo e acorda, ou uma cena em que ele boceja. Por isso comecei o filme já com o poeta acordado, o que, como precaução, se revelou afinal desnecessário. Estou hoje convencido de que Manuel tem o material de um excelente ator, capaz até mesmo de acordar e bocejar com a maior naturalidade, mas, antes de mim, ele próprio demonstrou que tinha confiança e disposição na sua capacidade de representar, sugerindo aquela cena de abertura. Os bons atores têm dons especiais que a escola ou o trabalho podem desenvolver mas não podem criar. Com o filme, ficou evidente que o poeta também é um excelente ator, que só por acaso, ou pela força de suas outras vocações, não se profissionalizou. A alegação de que ele levou vantagem porque conhecia muito bem o seu personagem e tinha o physique du rôle não desmerece o seu trabalho, ao contrário do que querem alguns, já que esses são apenas elementos necessários, básicos, a partir dos quais o ator começa a sua criação.

Em O Poeta do Castelo, Manuel Bandeira, apesar de amador, comportou-se com o rigor e a disciplina dos melhores profissionais. Que eu me lembre, só umas três vezes ele perdeu a paciência. Na seqüência do pátio, por exemplo, quando um grande número de lixeiros apareceu de repente, já no fim da filmagem, e começou a limpar a sujeira habitual e essencial ao cenário, apesar dos nossos protestos. Ficamos ameaçados de ter que filmar tudo de novo, e o poeta não aceitou bem essa solução. Resolvemos o problema conseguindo que os lixeiros nos deixassem terminar a seqüência para então serem filmados no ato de limpar o pátio. Em geral, só nas cenas de rua, quando os populares se punham à espera conosco de que o sol aparecesse ou desaparecesse, é que o poeta parecia silenciosamente arrependido.

Quando filmávamos dentro do seu apartamento havia mais serenidade. Santa Rita dos Impossíveis, a estatuazinha de gesso quebrada, dadas as referências de vida e de poesia espalhadas pelo apartamento aparecem no filme e sobreviveram incólumes aos deslocamentos de câmera e refletores.

Por querer bem ao poeta, fiquei gostando do filme. Acho que o personagem resistiu bem às possibilidades do diretor, que, hoje, reconsiderando o que fez, deixaria que o poeta se afastasse da Avenida Presidente Wilson, no fim do filme lendo o seu jornal.

Fonte: www.filmesdoserro.com.br

=o poeta do castelo=



O POETA DO CASTELO
por João Moreira Salles

O poeta do Castelo, um documentário de apenas dez minutos, é um dos segredos mais bem guardados do cinema brasileiro. Pena. Aos 27 anos de idade, logo no seu primeiro ano como diretor, Joaquim Pedro nos deu uma jóia. Trata-se de um filme tão simples quanto belo. Um senhor em trajes singelos sai para a rua deserta com uma garrafa vazia de leite na mão. Chega na mercearia e a entrega ao rapaz do balcão. Espera. Recebe de volta uma garrafa cheia e com ela retorna para casa — um homem só pela cidade, visto em plano aberto e distante, a câmera posicionada no alto de um prédio. Chega em casa, esquenta o leite, coa o café e faz torradas. O poeta Manuel Bandeira está prestes a tomar o seu café da manhã.

O filme é isso – só isso. O poeta não faz discursos, não nos ensina o sentido da vida, nem mesmo o da literatura. Atravessa uma manhã, apenas. Entre um gole e outro de café, olha pela janela (provavelmente sem vista, pelo que nos foi mostrado da vizinhança), pensa. Busca um livro, veste um pijama. Deita-se na cama, puxa uma mesa de hospital sobre a qual está uma máquina de escrever e escreve. Logo adiante, sai, não sem antes calçar meia e sapato. Os dedos do pé de Manuel Bandeira são nodosos e secos. A mim, lembram um poema de seu conterrâneo João Cabral. Se é que o adjetivo cabe, são pés franciscanos, tão despojados quanto o quarto onde ele está e o filme que o retrata. Ainda em casa, a voz de Bandeira recita o poema “Testamento”:

Criou-me desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Como um filme tão simples consegue ser tão tocante? Suponho que cada amante de O poeta do Castelo encontre as suas razões. De modo geral, à margem de qualquer digressão, bastaria dizer que o filme é intransitivamente belo, assim como uma árvore, ou certos prédios. Pessoalmente, duas coisas me fazem gostar tanto deste filme. Em primeiro lugar, a fé que demonstra na beleza sempre discreta dos pequenos gestos do dia-a-dia. Como um pintor holandês, Joaquim Pedro tem grande carinho pelo cotidiano. Garrafas, telefone, coador — cada objeto recebe atenção, o que não deixa de ser um juízo ético: nada, nem mesmo uma garrafa de leite vazia, merece desinteresse. O cuidado com que Bandeira busca sua xícara, guardada dentro de uma queijeira de vidro como se fosse um objeto precioso, é comovente porque revela exatamente isto: desvelo.

A segunda razão é o fato de esse cotidiano prosaico pertencer a um poeta como Bandeira. Há uma adequação absoluta nesse par. Um filme dessa natureza não serviria a um poeta de vida exaltada como Oswald de Andrade – seria falso — e muito menos a um poeta parnasiano, de palavras buscadas e construções preciosas. Mas para Bandeira é perfeito. Bandeira foi um dos poetas que trouxeram a poesia para perto, inspirando-se nas moças do sabonete Araxá, nas manchetes dos jornais e no porquinho-da-índia que ganhou de presente quando era criança. O mundo das coisas simples é o mundo em que ele se sente melhor. É o seu mundo correto.

Em determinado momento, Bandeira pega um dicionário e o consulta. É uma boa cena, um pequeno comentário sobre o poeta. A poesia não brota espontânea em seu espírito. Exige trabalho e esforço. Bandeira também precisa de dicionários. Joaquim Pedro não está negando a excepcionalidade do poeta. Isso seria baixo populismo – afinal, pouquíssimos de nós se comparam a Manuel Bandeira. Joaquim Pedro está dizendo outra coisa: que o poeta, como qualquer um, trabalha. Na aceitação de uma lida cotidiana e sem alarde, Bandeira é um homem como os outros.

O diretor e dramaturgo Domingos de Oliveira teve sua primeira experiência profissional no cinema com O poeta do Castelo. Foi assistente de direção de Joaquim Pedro. Hoje, passados quarenta anos, Domingos se recorda de um grupo de jovens — Joaquim Pedro tinha apenas 27 anos, e ele, 23 - maravilhosamente espantados diante da dupla responsabilidade de fazer jus não só ao poeta, mas também ao cinema, que todos descobriam naquele momento:

“As filmagens em si eram uma missa. Como era importante filmar! O enquadramento sagrado, milimetricamente definido, a la Bresson, que Joaquim amava. E o poeta, sendo padrinho do cineasta, comportava-se pacientissimamente... o poeta exalava humanidade, experiência de vida naquele apartamento mínimo de homem sozinho, onde ficávamos o dia inteiro. Tudo era muito lento. Não a lentidão da incompetência ou da preguiça e sim aquela da responsabilidade do ato de filmar, da busca obrigatória da perfeição...”.

No final de O poeta do Castelo, Bandeira sai para a rua e caminha pela avenida Presidente Wilson, no bairro do Castelo, em direção à Academia Brasileira de Letras. Sua voz em off recita “Vou-me embora pra Pasárgada”. À medida que ele avança, o Rio de Janeiro da década de 1950 corre pela tela. A elegância quieta do passeio, o brio dos prédios, a sombra confortável das grandes amendoeiras, o modernismo de Le Corbusier e de Lúcio Costa logo adiante, tudo sugere que no Rio já se planejou uma civilização — ou pelo menos foi assim que pensei quando assisti ao documentário pela primeira vez, no início da década de 1990. Aos meus olhos, aquela cidade que não conheci parecia caber na utopia que o poeta recitava.

Só recentemente, ao ler as lembranças que Domingos me enviou sobre o filme, descobri que aquilo que me parecia tão bom já era tristeza para Manuel Bandeira:

“Um dia a equipe se atrasou, por algum motivo, e fiquei sozinho com o Bandeira por algumas dezenas de minutos. Em frente ao Ministério da Educação, esperando. Foi terrível. Eu não me atrevia a falar e não me parecia certo ficar em silêncio. Mas assim mesmo o silêncio se impôs durante minutos, ali, em meio ao trânsito, e então o poeta falou. Me disse: 'Esse mundo aqui não é mais o meu. Tudo está muito diferente. As ruas estão todas diferentes. No meu tempo o Ministério não existia... As pessoas também. A maior parte das pessoas que eu conheci já estão mortas. Esse mundo não é mais meu'."