22.12.10
=o poeta do castelo=
O POETA DO CASTELO
por João Moreira Salles
O poeta do Castelo, um documentário de apenas dez minutos, é um dos segredos mais bem guardados do cinema brasileiro. Pena. Aos 27 anos de idade, logo no seu primeiro ano como diretor, Joaquim Pedro nos deu uma jóia. Trata-se de um filme tão simples quanto belo. Um senhor em trajes singelos sai para a rua deserta com uma garrafa vazia de leite na mão. Chega na mercearia e a entrega ao rapaz do balcão. Espera. Recebe de volta uma garrafa cheia e com ela retorna para casa — um homem só pela cidade, visto em plano aberto e distante, a câmera posicionada no alto de um prédio. Chega em casa, esquenta o leite, coa o café e faz torradas. O poeta Manuel Bandeira está prestes a tomar o seu café da manhã.
O filme é isso – só isso. O poeta não faz discursos, não nos ensina o sentido da vida, nem mesmo o da literatura. Atravessa uma manhã, apenas. Entre um gole e outro de café, olha pela janela (provavelmente sem vista, pelo que nos foi mostrado da vizinhança), pensa. Busca um livro, veste um pijama. Deita-se na cama, puxa uma mesa de hospital sobre a qual está uma máquina de escrever e escreve. Logo adiante, sai, não sem antes calçar meia e sapato. Os dedos do pé de Manuel Bandeira são nodosos e secos. A mim, lembram um poema de seu conterrâneo João Cabral. Se é que o adjetivo cabe, são pés franciscanos, tão despojados quanto o quarto onde ele está e o filme que o retrata. Ainda em casa, a voz de Bandeira recita o poema “Testamento”:
Criou-me desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Como um filme tão simples consegue ser tão tocante? Suponho que cada amante de O poeta do Castelo encontre as suas razões. De modo geral, à margem de qualquer digressão, bastaria dizer que o filme é intransitivamente belo, assim como uma árvore, ou certos prédios. Pessoalmente, duas coisas me fazem gostar tanto deste filme. Em primeiro lugar, a fé que demonstra na beleza sempre discreta dos pequenos gestos do dia-a-dia. Como um pintor holandês, Joaquim Pedro tem grande carinho pelo cotidiano. Garrafas, telefone, coador — cada objeto recebe atenção, o que não deixa de ser um juízo ético: nada, nem mesmo uma garrafa de leite vazia, merece desinteresse. O cuidado com que Bandeira busca sua xícara, guardada dentro de uma queijeira de vidro como se fosse um objeto precioso, é comovente porque revela exatamente isto: desvelo.
A segunda razão é o fato de esse cotidiano prosaico pertencer a um poeta como Bandeira. Há uma adequação absoluta nesse par. Um filme dessa natureza não serviria a um poeta de vida exaltada como Oswald de Andrade – seria falso — e muito menos a um poeta parnasiano, de palavras buscadas e construções preciosas. Mas para Bandeira é perfeito. Bandeira foi um dos poetas que trouxeram a poesia para perto, inspirando-se nas moças do sabonete Araxá, nas manchetes dos jornais e no porquinho-da-índia que ganhou de presente quando era criança. O mundo das coisas simples é o mundo em que ele se sente melhor. É o seu mundo correto.
Em determinado momento, Bandeira pega um dicionário e o consulta. É uma boa cena, um pequeno comentário sobre o poeta. A poesia não brota espontânea em seu espírito. Exige trabalho e esforço. Bandeira também precisa de dicionários. Joaquim Pedro não está negando a excepcionalidade do poeta. Isso seria baixo populismo – afinal, pouquíssimos de nós se comparam a Manuel Bandeira. Joaquim Pedro está dizendo outra coisa: que o poeta, como qualquer um, trabalha. Na aceitação de uma lida cotidiana e sem alarde, Bandeira é um homem como os outros.
O diretor e dramaturgo Domingos de Oliveira teve sua primeira experiência profissional no cinema com O poeta do Castelo. Foi assistente de direção de Joaquim Pedro. Hoje, passados quarenta anos, Domingos se recorda de um grupo de jovens — Joaquim Pedro tinha apenas 27 anos, e ele, 23 - maravilhosamente espantados diante da dupla responsabilidade de fazer jus não só ao poeta, mas também ao cinema, que todos descobriam naquele momento:
“As filmagens em si eram uma missa. Como era importante filmar! O enquadramento sagrado, milimetricamente definido, a la Bresson, que Joaquim amava. E o poeta, sendo padrinho do cineasta, comportava-se pacientissimamente... o poeta exalava humanidade, experiência de vida naquele apartamento mínimo de homem sozinho, onde ficávamos o dia inteiro. Tudo era muito lento. Não a lentidão da incompetência ou da preguiça e sim aquela da responsabilidade do ato de filmar, da busca obrigatória da perfeição...”.
No final de O poeta do Castelo, Bandeira sai para a rua e caminha pela avenida Presidente Wilson, no bairro do Castelo, em direção à Academia Brasileira de Letras. Sua voz em off recita “Vou-me embora pra Pasárgada”. À medida que ele avança, o Rio de Janeiro da década de 1950 corre pela tela. A elegância quieta do passeio, o brio dos prédios, a sombra confortável das grandes amendoeiras, o modernismo de Le Corbusier e de Lúcio Costa logo adiante, tudo sugere que no Rio já se planejou uma civilização — ou pelo menos foi assim que pensei quando assisti ao documentário pela primeira vez, no início da década de 1990. Aos meus olhos, aquela cidade que não conheci parecia caber na utopia que o poeta recitava.
Só recentemente, ao ler as lembranças que Domingos me enviou sobre o filme, descobri que aquilo que me parecia tão bom já era tristeza para Manuel Bandeira:
“Um dia a equipe se atrasou, por algum motivo, e fiquei sozinho com o Bandeira por algumas dezenas de minutos. Em frente ao Ministério da Educação, esperando. Foi terrível. Eu não me atrevia a falar e não me parecia certo ficar em silêncio. Mas assim mesmo o silêncio se impôs durante minutos, ali, em meio ao trânsito, e então o poeta falou. Me disse: 'Esse mundo aqui não é mais o meu. Tudo está muito diferente. As ruas estão todas diferentes. No meu tempo o Ministério não existia... As pessoas também. A maior parte das pessoas que eu conheci já estão mortas. Esse mundo não é mais meu'."
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