Lá no meio da floresta, entre as mais frondosas árvores, bem no centro, justo lá, longe longe muito longe de toda e qualquer cidade, mora o mais fiel vigia da sublime Mãe Natureza, o Curupira. O que vou lhes contar, confesso que nunca vi, mas conto o que conto direitinho como aconteceu. É o conto direitinho como aconteceu porque foi o que eu pequenininho ouvia do meu pai, que ouvia da minha avó, que aprendeu com meu bisavô, bem do jeitinho que lhe contou meu tataravô.
Meus amigos, ouçam bem: com espingarda e munição, muito homem covarde se acha valente como onça-pintada e mergulha na mata, haja luz ou escuridão. De posse de arma de fogo, acredita-se rei da selva, crê-se mais feroz que jacaré-açu, mais veloz que suçuarana, mais cruel que sucuri. O olho dele mira bicho de todos os portes, grande, médio, mesmo pequeno. A boca saliva à vista de cada pegada de rês. Os cheiros e sons são trombetas que anunciam o macio da carne da caça. O dedo que aperta o gatilho manda bala em pai, mãe e cria pelo gosto mais tolo de matar. E caçador que mata só por diversão, ahhh esse sofre na mão do Curupira.
O Curupira é o guardião das matas, o protetor dos animais, o defensor dos povos da floresta.
Tem pele morena e olhos de fogo, cabeleira cor de brasa e altura de um curuminzinho. E, acreditem, os dois pés são virados para trás. Ele anda pra frente, mas com os pés para trás! Sim, o povo jura, é verdade dada como vista e vivida: seus calcanhares apontam diretinho para frente. E é assim que ele deixa pegadas que confundem os caçadores perversos. Quem segue nos passos dele, tem o Curupira sempre ao encalço para azucrinar o juízo com o assovio mais estridente já ouvido desde que nossa Terra é Terra. Um assovio alto e fino. Mais alto e mais fino que silvo de apito de prata. Caçador que encontra o Curupira, das duas uma: ou foge da mata em disparada ou fica perdido para sempre lá no meio da floresta, entre as mais frondosas árvores, bem no centro, justo lá, longe longe muito longe de toda e qualquer cidade.
Querem provas? Ouçam só: era já boca da noite quando Seu Tião, caçador lá da Amazônia, se embrenhou na mata para arrumar paca ou tatu para a janta. Cotia, Dona Dina não gostava. “Paca, tatu, cotia não”, dizia de si pra si e repetia seu Tião o caminho todo.
Seu Tião tomou rumo do caminho do Noçoquém, de espingarda e lampião na mão, para matar caça que por ventura aparecesse sob a fruteira, que é lá que bicho faminto procura alimento, come os frutos, mata a fome. Assim que chegou, vasculhou ao redor, reconheceu o terreno e certificou-se de que a trilha de volta era a mesma da vinda, por entre dois troncos de bases mais largas que a cinta de Dona Dina. Sentou-se numa pedra, cortou e amassou tabaco, preparou o cigarrinho e acendeu. Dava umas baforadas loooooooooongas, sentado, sereno, só pensando na caça ainda por vir. De modo que percebia, nem tão longe nem tão perto, na maior tranquilidade, tudo o que acontecia sob as copas carregadas de frutas.
Acostumado que estava, saboreava a espera. Ouvia a noite própria da mata: os trilos, pios e pipios do murutucu, o zum zum zum zum dos insetos, os cricris cricris do grilo, os - crec! - estalos dos – crec! - galhos... Estalos de galho?!? CREC?!? Olha lá uma cotia! Cotia, Dona Dina não gostava. Aparecer paca ou tatu era só questão de tempo.
Foi então, no cotoquinho do cigarro, que Seu Tião ouviu ruído de pisada em folha seca. Tacou a guimba acesa na capoeira, catou o lampião e juntou ao cano da arma para iluminar o alvo e ajustar a mira. Tchom! Tiro único e certeiro estalou bem nos cornos de um tatu. Tchom! Tchom! Chumbo grosso duas vezes para abater uma paca enorme. Tchom! Tchom! Puf!
Dos três tiros disparados para derrubar um veado, o terceiro, deus me livre, reluziu em vagalume. Bala que vira vagalume, vocês sabem, é magia. E magia no meio do mato é obra do Curupira.
As estrelas lá do céu da Amazônia são testemunha do clarão que se abriu no caminho do Noçoquém naquela noite. Clarão de dia aberto, clarão de meio-dia do mais pleno. Seu Tião avistou a cabeleira vermelha e tremeu. Sentiu-lhe descer goela abaixo o calor seco dos olhos de fogo e desbotou. Viu os pés às avessas e bateu os dentes que restavam, sete em cima, seis em baixo. Era quem, meus amigos? Era o Curupira.
O pequeno deus das florestas estava lá, montado num porco do mato, para punir o Seu Tião. A paca, o tatu e o veado, Curupira mostrou, eram muito mais que o bastante para Dona Dina preparar a janta. A capoeira, Curupira apontou, consumia-se em chamas com o fogo da guimba do cigarro que Seu Tião havia tacado. E caçador perverso, que mata só por diversão e que não respeita a floresta, ahhhh esse sofre na mão do Curupira.
Seu Tião, encharcado pelo suor frio do pavor, correu à procura da trilha de volta para casa. Esquadrinhou tudo tudinho e não encontrou nenhum dos dois troncos de bases mais largas que a cinta de Dona Dina. Coisa do Curupira. Seu Tião decidiu então fuzilar aquela aberração medonha, com tiro de espingarda e muita raiva para vencer o medo. Puf! Puf! Puf! A arma de fogo era agora fábrica de luz. Dali só saíam vagalumes. Em último ato de desespero, Seu Tião se largou de joelhos no chão e juntou as mãos a pedir perdão. Chorava e pedia desculpas, jurava para sempre se endireitar.
O pequeno deus guardião das matas, protetor dos animais e mais fiel vigia da Mãe Natureza fez um movimento chamativo com o braço direito. Orquestrados, todos os vagalumes envolveram a paca, o tatu, o veado e Seu Tião. Pelo poder da magia, Curupira fez surgir, no lugar do que antes havia ali, quatro pássaros imensos no meio dos vagalumes, pássaros gordos, com penas brilhantes de todas as cores. Com mais um movimento solene e mágico do braço direito do Curupira, a espingarda de Seu Tião foi amolecendo, amarelando, encourando, engordando, amaciando, crescendo, enrolando, crescendo mais, enrolando mais e mais e mais... Até que, quando se deu conta, já era uma jiboia. Feliz de não ser mais arma de fogo, a cobra agradeceu o Curupira com uma piscadela e rastejou mata adentro.
Naquela noite, Dona Dina esperou em vão. Preparou a janta com o que encontrou na dispensa e comeu sozinha na varanda de casa, incomodada com o canto triste e rouco, como quem ronca um lamento aflito, de um urutau que sobrevoava em círculos o terreno. Dona Dina, que não suportava bicho fora da panela, passou a madrugada arremessando pedras para calar o urutau.
Lá no meio da floresta, entre as mais frondosas árvores, bem no centro, justo lá, longe longe muito longe de toda e qualquer cidade, o mais fiel vigia da sublime Mãe Natureza, o Curupira, preparou-se para mais uma missão sob a luz da lua mais cheia que se viu na floresta amazônica, desde que nossa Terra é Terra.