26.4.09
=zii e zie (aumento mas não invento)=
O amor mais que discreto de Caetano Veloso por Pedro Sá está explícito em Zii e Zie. A fase do homem velho é de tara por experimentações rítmicas do samba na guitarra, e o disco foi composto e arranjado com essa idéia central: Pedro Sá. O resultado é um mergulho no mar agitado de um dia chuvoso. Não é mole.
O momento-chave para a parceria, e crucial para chegarmos a Zii e Zie, está tanto no arranjo como na letra de "Rock'n'Raul", o rock sujo sobre a "vontade fela-da-puta" que Raul Seixas tinha de ser americano, faixa de Noites do Norte (2000). Ali Pedro pesou a mão nas cordas da guitarra e não economizou na distorção: cama feita para Caetano polemizar e ainda cutucar o lobo com vara curta. Tá lá, entre parênteses, uma linha: "(E o lobo bolo)".
Do contra-ataque furioso de Lobão saíram faíscas que Caetano ruminou baianamente e deixou queimar aos poucos. Dá uma espiada no trecho abaixo:
Para o mano Caetano
(Lobão, 2001)
Amado Caetano: Chega de verdade. Viva alguns enganos. Viva o samba, meio troncho, meio já cambaleando. A bossa já não é tão nova como pensam os americanos. A tropicália será sempre o nosso Sgt. Pepper's pós-baiano. O rock errou, você sabe, digo isso sem engano.
Na realização de dois discos-projetos - a parceria com Jorge Mautner em Eu não peço desculpa (2002) e o tributo à música popular americana A foreign sound (2004) - Caetano não perdeu o foco. Continuou com Pedro Sá na banda e recheou seu discurso: afirmativo, "Nosso samba tem também guitarra de rock'n'roll", em "Feitiço"; provocativo, "Ivan Lins é música, Nirvana é lixo", no texto de apresentação do mesmo disco em que incluiu "Come as you are", da banda de Seattle; e reflexivo, "Eu não peço desculpa é também uma continuação de 'Rock'n'Raul', essa canção que me parece tão grandiosa quão mal compreendida", no texto de apresentação do disco com Mautner.
Afetado pela experiência barulhenta de "Rock'n'Raul" e sempre antenado musicalmente (ligado no que rolava de indie rock - Arctic Monkeys, TV on the Radio, a força que teve a volta dos Pixies), Caetano soltou Cê (2006), disco idealizado para uma banda de rock. Nas letras, conciso, ultradireto, sexual, roxo, com confiança de comedor. Tinha acabado de sair de um relacionamento de anos e mostrava ali a sua - para usarmos um vocabulário adequado - paudurecência. Na música, influência direta da forma como os Pixies trabalharam as estruturas das canções. A banda americana é sempre lembrada (justamente, pois a consequência é o Nirvana e uma outra grande história para contar) pela dinâmica revolucionária que trouxe ao rock: quietLOUDquiet, ou seja, estrofe calma baseada em baixo e bateria, refrão nervoso com guitarras e vocais explodindo os alto-falantes. Mas além da dinâmica, a estrutura das músicas de Black Francis é muito marcante no som do Pixies. O gorducho é fã de riffs ou sequências harmônicas em tempos não-convencionais ("Dead", "Vamos", "There goes my gun", "I've been tired", "Tony's theme" e outras tantas). Cê é rock apaixonado por estruturas. Ouve lá "Outro", "Homem", "Rocks". Quem guiou Caetano por esses labirintos? Pedro Sá, responsável por apresentar Pixies-Live at the BBC ao baiano. O rock acerta também.
"Chega de verdade. Viva alguns enganos. Viva o samba, meio troncho, meio já cambaleando." A frase continuou a assombrar um certo apartamento no Leblon. Oito anos depois chega outra resposta às palavras ácidas do grande lobo: e aqui ele tinha razão. Se tínhamos no rock a intenção de Cê, seu sucessor tem o samba meio troncho como núcleo. Viva o samba mutilado de Zii e Zie, sem alegorias e adereços, destilado à essência. Outra vez, paixão pela forma. Nas letras, sexo, drogas e Rio de Janeiro. Na música, guitarra, repetição e samba.
Dois mestres do violão brasileiro, João Bosco e Gilberto Gil, traçaram o caminho que leva a Pedro Sá, orientando de mestre Veloso. João acentua em sua mão direita tempos estranhos ao violão de samba tradicional, parece tocar pandeiro, marca com vontade e precisão. Está lá em "Incompatibilidade de gênios", "Cobra criada", "Nação". Gil ensinou a Caetano a batida que lá em 1975 fixou milimetricamente as divisões de "Madrugada e amor" e "Eleanor Rigby", de Qualquer coisa. A mão direita, novamente, é o segredo: reduz o samba a uma marcação minimalista, insistente, simples e bela. Agora Pedro Sá ressalta tudo isso em loops com timbres rascantes. É vinho que trava na goela, é banana cicada.
O trovador da música popular brasileira, autor de sambas antológicos como "Desde que o samba é samba" e "Os passistas", intérprete preciso, poeta da canção, quer em Zii e Zie a abordagem, quer expor o esqueleto, endurecer a cintura em nome do samba. Experimentar novamente. Saborear, agora de um jeito radical, o batuque da nação.
Cadê teu suín-, Marcelo Callado? Em Zii e Zie não precisa, meu povo, a bateria é máquina de ritmo, matemática. Nas versões de "Incompatibilidade de gênios" (primeiro bumbo-caixa-bumbo-caixa, depois caixa-bumbo-caixa-bumbo) e "Ingenuidade" chega a lembrar exercícios técnicos do instrumento. Ricardo Dias Gomes segura a célula rítmica com a mesma precisão do parceiro Do Amor, e vez ou outra tece nas quatro cordas comentários tímidos (descolando-se de todos ao segurar uma nota) ou mais ousados (passeando pelo braço do contrabaixo).
Caetano, sim, é comentarista atirado. "Falso Leblon", "Lapa" e "Lobão tem razão" são músicas-irmãs, crônicas cariocas. Melodias e letras que se alongam sem amarras, como as entrevistas do artista. Relação direta com a época em que foram compostas: entre os shows da temporada de Obra em Progresso, no Rio, quando Caetano semanalmente repassava o noticiário e entretinha a platéia com repertórios referenciais ao cotidiano de todos. As canções que foram apresentadas antes, já no primeiro show, não à toa, são as mais concisas, tem molde: "Perdeu", "Base de Guantánamo", "Por quem?", "Sem cais" (que me trouxe uma saudade danada do mulheresqdizemsim, banda em que Pedro Sá soltou algumas de suas composições, e que preferi ver no Jazzmania a ir no primeiro show dos Rolling Stones no Brasil, na mesma noite - eita), "A cor amarela" e "Tarado ni você".
Esta última foi a primeira composição dessa nova safra, feita com o conceito da experimentação de samba na guitarra elétrica já na cabeça. ("Diferentemente" é mais antiga, mas já estava no show de A foreign sound e só entrou em Zii e Zie depois que os herdeiros Veloso opinaram sobre o repertório; está no fim do disco, é o patinho bonito da prole.) Mas voltemos "ni você": enquanto insiste, na lábia e na levada, em se declarar tarado, o narrador deixa suspenso o "deixa eu gostar de...", trecho de outra canção de Caetano, "Nosso estranho amor". Quando a conclusão do verso vem ("deixa eu gostar de VOCÊ") é a senha para a entrada atormentada da guitarra de Pedro Sá. Coincidência?
Esse estranho amor não é ilusão à toa, e nos traz um marco na carreira de uma das maiores figuras de nossa música. O mergulho no mar sombrio da capa é esquisito, sim. Aqui fala um admirador de Zii e Zie - título que tem na repetição o seu charme. Como o som do disco.
Em tempos de banda larga, meu Zii e Zie cruzou o Atlântico de avião, na bagagem de um amigo. Um presentaço que eu não esperava. Confesso que - há anos sem fazê-lo - ouvir um CD novo de cabo a rabo com o encarte na mão foi uma experiência inesquecível. Sou eternamente agradecido.
Marcadores:
caetano veloso,
do amor,
lobão,
marcelo callado,
mulheresqdizemsim,
pedro sá,
ricardo dias gomes,
zii e zie
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
excelente post. dá pra sacar que vc ficou realmente amarradão ao ouvir o cd novo de caê.
ReplyDeletetorci um pouco o nariz pro cê e tb não me animei com o zii e zie, ainda não ouvi, mas let's give a chance...
agora tira o violão da capa e toca "London London"
ReplyDelete:o)